segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O avanço do fim do foro

O avanço do fim do foro

No STF, a votação foi interrompida por um pedido de vistas porque ninguém quer perder o manto protetor, mas a restrição ao privilégio caminha no Congresso

Crédito: Adriano Machado Crédito: Adriano Machado 
Crédito: Adriano Machado 
 
  
AGORA VAI? A proposta de Álvaro Dias, que restringe o foro privilegiado, já passou no Senado (Crédito: Adriano Machado)

Um grupo de 54 mil brasileiros, sobretudo políticos, é uma casta superior a qualquer um dos outros milhares de brasileiros comuns. Esses cidadãos considerados especiais, que tem foro privilegiado para o julgamento de seus crimes, se escondem atrás dessa regalia jurídica para ficarem impunes. É consenso de que esse privilégio precisa acabar. Apesar de a discussão sobre o fim do foro privilegiado estar parada no STF, após um pedido de vistas do ministro Dias Toffoli, o tema avançou no Congresso graças à Proposta de Emenda Constitucional 333/2017, de autoria do senador Álvaro Dias (PODE-PR). Depois de passar pelo crivo do Senado, a matéria agora está tramitando na Câmara. Na última semana, o presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), determinou a criação de uma comissão especial para analisar a PEC. O texto de Álvaro Dias restringe o foro, em caso de crime comum, apenas ao presidente e vice-presidente da República, e aos presidentes do STF, Câmara e Senado. Todas as demais autoridades – como juízes, deputados e senadores – seriam julgadas em primeira instância.
“Odioso”
A mudança será radical. Se a PEC fosse aplicada hoje, apenas dois dos 76 inquéritos instaurados atualmente com base nas delações premiadas da Odebrecht permaneceriam no STF – justamente os que envolvem o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE). Para o senador Álvaro Dias, o foro privilegiado é um “privilégio odioso” no caso de um crime comum como peculato, corrupção passiva ou homicídio. “O foro privilegiado é uma excrescência, e estabelece uma contradição, uma incoerência, porque o artigo 5º da Constituição afirma que todos somos iguais perante a lei”, disse o parlamentar. As autoridades terão direito ao foro privilegiado no caso de crimes de responsabilidade, ou seja, aqueles cometidos em decorrência do exercício do cargo público. O texto não alterou a proibição da prisão de parlamentares, salvo em flagrante por crime inafiançável.
Em todo caso, há avanço em direção ao fim do foro privilegiado, uma das grandes demandas da sociedade brasileira. Atualmente, há um número excessivo de autoridades com direito a alguma forma de julgamento especial, que retira seus processos da Justiça comum de primeira instância. São mais de 54 mil pessoas, entre deputados, senadores, ministros de estado, governadores, prefeitos, ministros de tribunais superiores, desembargadores, embaixadores, comandantes das Forças Armadas, integrantes de tribunais regionais federais, juízes federais, membros do Ministério Público, procurador-geral da República e membros dos conselhos de Justiça e do Ministério Público. Essas autoridades são julgadas em tribunais específicos, muitas vezes abarrotados de processos (como é o caso do STF), o que leva a processos lentos, com prescrição de crimes e impunidade.
“Não há mais o que se discutir, não há mais o que se fazer senão a Câmara votar a PEC do fim do foro privilegiado como saiu do Senado, para podermos comemorar o surgimento de uma nova Justiça no Brasil”, afirmou Álvaro Dias. Inicialmente, a PEC foi apresentada em 2013, mas só passou a tramitar com rapidez quando a Operação Lava Jato revelou o envolvimento de centenas de políticos em crimes de corrupção. Foi quando surgiram, também, os apelos da população pelo fim do foro privilegiado. A urgência do fim do foro fica ainda mais clara quando se analisa os resultados da Lava Jato em primeira instância em comparação com os julgamentos do STF. Em três anos e nove meses de operação, somente o juiz Sergio Moro já condenou 113 pessoas a um total de 1.753 anos de prisão. Enquanto isso, no Supremo, há apenas seis ações penais contra parlamentares e nenhuma condenação.
Em 31 de maio deste ano, a PEC 333/2017 foi aprovada no Plenário do Senado e seguiu para a Câmara. No fim de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o texto. O próximo passo na Câmara é a instalação da comissão especial. Depois, o texto poderá ser votado em Plenário. Há várias interpretações para o fim do foro privilegiado. Porém, prevalece o consenso de que o modelo atual possui falhas e precisa ser aperfeiçoado. Esse é o caminho para acabar com a impunidade que tanto mal faz ao País.
“O foro privilegiado é uma excrescência porque o artigo
5º da Constituição afirma que todos somos iguais perante a lei”

Álvaro Dias, senador
Cidadãos de primeira classe
• O Brasil é um dos países com maior número de autoridades com prerrogativa de foro. Atualmente, são mais de 54 mil pessoas privilegiadas
• Segundo dados do “Relatório Supremo em Números: o foro privilegiado”, da Fundação Getulio Vargas, há no STF mais de 500 procedimentos contra políticos
• Em três anos e nove meses de Lava Jato, somente o juiz Sergio Moro já condenou 113 pessoas a um total de 1.753 anos de prisão. Enquanto isso, no Supremo, há apenas seis ações penais contra parlamentares e nenhuma condenação
• PEC 333/2017, de autoria do senador Álvaro Dias (PODE-PR), restringe o foro, em caso de crime comum, apenas ao presidente e vice-presidente da República, e aos presidentes do STF, Câmara e Senado. Outras autoridades – como juízes, deputados e senadores – seriam julgados em primeira instância, como qualquer cidadão comum
• A PEC foi aprovada pelo Senado em maio. No fim de novembro, foi aprovada na CCJ da Câmara. Nesta semana, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), determinou a criação da comissão especial que discutirá o texto. Em seguida, haverá votação em dois turnos no Plenário da Câmara. O fim do foro privilegiado está próximo?


FONTE https://istoe.com.br/o-avanco-do-fim-do-foro/

Movimentos negros repetem lógica do racismo científico, diz antropólogo


Movimentos negros repetem lógica do racismo científico, diz antropólogo

Joca Duarte/Photopress
Manifestantes na Marcha da Consciência Negra no último dia 20 de novembro

RESUMO No dia 20 de novembro, na avenida Paulista, manifestantes negros carregaram faixa com os dizeres 'miscigenação é genocídio'. Para antropólogo, trata-se de retorno a noções racistas anacrônicas (utilizadas pelos brancos no século 19) e pregação explícita em favor de um apartheid amoroso-sexual no Brasil.
*
O mulato Abdias do Nascimento —que caminhou do fascismo integralista para o racialismo "made in USA"— era um homem preconceituoso. Basta ver a estranha seletividade com que, apesar de sua filiação à mestiçagem tristetropical brasileira, ele usa a própria palavra "mulato".
Quando quer fazer o elogio de algum mestiço de branco e preto, Abdias chama-o "negro". Mas, quando quer execrar o sujeito, trata-o como "mulato" (muito embora, em seu discurso geral, faça de conta que o mulato não existe).
Assim, nos seus textos e palestras, o mulato Luiz Gama, filho de branco baiano de origem portuguesa e da preta Luiza Mahin, era "negro". Já o mulato capitão-do-mato ou feitor, não: era "mulato" mesmo.
Pois bem. Descende diretamente do velho guru Abdias do Nascimento (1914-2011) o slogan racialista exibido em manifestação na avenida Paulista, no dia 20 de novembro, pelos ativistas dos movimentos negros: "Miscigenação também é genocídio" —pregação explícita em favor da implantação de um apartheid amoroso-sexual no país.
Diante da afirmação slogamática, aliás, ficam menores outros debates, como os estéticos, quando, depois que conseguimos atirar fora a praga do "realismo socialista", querem nos aprisionar no cárcere do "realismo racialista". E um filme como "Vazante" (Daniela Thomas) acabou pagando o pato recentemente, nesse "revival" rácico-stalinista.
Agora, com o combate à miscigenação à frente, o lance é mais grave: passa-se do "lugar de fala" ao "lugar de cama".
Mas vamos puxar o fio da meada. Em "O Genocídio do Negro Brasileiro" (1978), bíblia do nosso racialismo essencialmente colonizado, um Abdias confuso e sectário monta duas sequências. Numa, encadeia mestiçagem, branqueamento e alienação da identidade negra. Noutra, amarra miscigenação, branqueamento e aniquilação da raça negra.
Neste segundo caso, Abdias vê a mestiçagem/miscigenação como estratégia de extermínio da população negra: "(...) o mulato prestou serviços importantes à classe dominante; durante a escravidão ele foi capitão-do-mato, feitor (...). Nele se concentraram as esperanças de conjurar a 'ameaça racial' representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil".
E ainda, como se nunca tivesse se olhado no espelho: "O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. (...) Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país".
ANACRONISMO
Como argumentei em "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (2007), é uma visão unilateral e anacrônica, para dizer o mínimo. Tanto do ponto de vista histórico, quanto do genético. Por várias razões. Afinal, quem quer que conheça a história de nosso passado escravista sabe que mulatos não foram somente capitães-do-mato ou feitores.
Muito pelo contrário: participaram de rebeliões contra a elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre outras coisas, formaram a liderança da Revolução dos Alfaiates (1798), centrada na luta contra a escravidão e o colonialismo —liderança que foi presa e enforcada em praça pública.
Além disso, não só a miscigenação não é —nem pode ser— um processo unilateralmente embranquecedor, como tal projeto de branquear a população foi coisa datada e exclusiva da classe dirigente —e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua maior medida, à revelia do Estado e dessa classe.
Por fim, é mais do que anacrônica a suposição de Abdias que sustenta o feminismo negro. A mestiçagem, hoje em dia, não pode mais ser vista como violência contra a mulher negra.
Primeiro, porque temos uniões de homens pretos com mulheres brancas. Segundo, porque a união ou o casamento de um homem branco com uma mulher preta não se dá mais sem seu assentimento, cumplicidade ou mesmo iniciativa. Melhor não falsear a realidade com discursos "historicistas".
Mas é impressionante, paradoxal mesmo, ver como a atual ideologia racialista, que se alastrou pelo país a partir principalmente do ambiente acadêmico, repete ao pé da letra a velha miragem do "racismo científico" do século 19, que acreditava na fantasia de uma desigualdade essencial e insuperável entre as raças.

Naquela época, os teóricos do "racismo científico" defenderam a tese totalmente sem pé nem cabeça (que agora vemos retomada) de que era possível branquear a população brasileira através da imigração e da miscigenação, já que neste processo prevaleceriam sempre os genes da "raça superior" —a branca, naturalmente.
Em "Sur les Métis au Brésil" (sobre os mestiços do Brasil), texto apresentado em 1911 no primeiro Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, o antropólogo Batista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou até a fazer suas contas na ponta do lápis. Segundo ele, o branqueamento do povo brasileiro estaria concluído na segunda década do século 21.
E sempre que recordo isso, lembro também uma deliciosa boutade do mestiço brasileiro Chico Buarque de Hollanda, falando da obrigação em que estávamos de promover o casamento do goleiro Taffarel e da apresentadora Xuxa, a fim de tentar evitar a extinção da raça branca no Brasil.
ATAQUES
Agora, como disse, os racialistas repetem o dogma que se revelou um fracasso histórico espetacular. E adiantam outros passos esdrúxulos, desde que a paranoia político-social tem seus próprios desenhos e suas próprias regras.
Com medo de um branqueamento final e total do povo brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo grosso contra relações amorosas e sexuais que envolvam pretos e brancos. E não é de hoje. Já na década de 1970 esse discurso tinha aflorado com nitidez.
O próprio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si mesmo nem discutia seu próprio cotidiano, era discreta mas severamente criticado por diversos ativistas político-acadêmicos do movimento negro, em consequência do seu casamento com uma branca americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem ruinzinho, por sinal) "Pan-Africanismo na América do Sul: Emergência de uma Rebelião Negra" (1981).
E Abdias, embora defendesse a tese estapafúrdia de que miscigenação era genocídio, nunca se deu ao trabalho de analisar o seu caso pessoal. Sempre fez de conta que não ostentava uma ancestralidade mista —birracial, no mínimo— e que não vivia com a mulher que vivia. Mas vamos deixá-lo de parte por ora.
O que quero salientar é o ponto a que chegaram nossos atuais "neonegros" (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos). Já faz tempo que, em seu afã de combater a mescla interracial, vêm falando de um tal de "amor afrocentrado", rótulo ideológico que mais não é do que um eufemismo para a segregação erótica.
Tem mais. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem.
No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais. Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário: em vez de rediscutir em profundidade a questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua deixou de existir.
Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável da fantasia da democracia racial. Recusar-se a usar a noção é como se recusar a falar de raça por causa do uso que os nazistas fizeram do conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem. Se não entendermos nossas misturas, nunca entenderemos a nós mesmos.
E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o conflito, nem a discriminação. A melhor prova disso é o Brasil. Aqui, uma coisa é certa. Não pode existir delírio ideológico maior, entre nós, do que fantasiar a inexistência de mestiços. Mestiços nascem diariamente de uma ponta a outra do país.
Mas vamos finalizar. Se a mestiçagem diminui a população negra, também diminui a população branca. É curioso que "racistas científicos" e racialistas atuais acreditem no contrário, que a miscigenação branqueia, mas não escurece. A verdade é que o processo biológico não é (nem poderia ser) de mão única, privilegiando magicamente os brancos.
Um estudioso negroafricano menos delirante, Kabengele Munanga, em "Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil" (1999), vai ao ponto: "(...) a realidade empírica, crua, observada por todos, é a de que o Brasil constitui o país mais colorido do mundo racialmente (...). Fica insustentável a crença no aniquilamento do contingente negro, por um lado, e no branqueamento completo de toda a população brasileira, por outro (...). O colorido da população desmente as previsões do modelo".
Claro. A verdade é que, se um dia não houver nenhum negro no Brasil, também não haverá nenhum branco. E assim me vejo na obrigação de repetir aqui uma observação (óbvia) que já fiz inúmeras vezes: se for pelo caminho da miscigenação, o genocídio do negro será inseparável do suicídio do branco.

FONTE http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1943569-movimentos-negros-repetem-logica-do-racismo-cientifico-diz-antropologo.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb