terça-feira, 26 de setembro de 2017

Antíteses sem Teses: o milagre prometido pelos inimigos do “conteudismo”

Antíteses sem Teses: o milagre prometido pelos inimigos do “conteudismo”


A retórica do modelo pedagógico hegemônico no Brasil tem a aparência de um “sacrifício do intelecto”, mas não por obediência à autoridade de algum dogma, senão para performaticamente libertar a educação de relações opressoras. Assim, alega-se, sendo o conhecimento tão universal quanto a atividade de respirar ou digerir alimentos, carece de sentido a diferença hierárquica entre os estudantes e o professor em sala de aula, já que sua superioridade estaria apoiada na premissa falsa de que ele monopoliza o conteúdo. Tudo isso deveria, portanto, desaparecer para dar espaço ao livre debate, sem hierarquias já que o professor reconhece e valoriza o conhecimento que crianças e adolescentes trazem de fora das escolas. Antes que discutir se de fato estudantes são dotados de saldo cognitivo comparável aos bens culturais do repertório de professores, ou julgar a legitimidade de reivindicar a abolição da autoridade nas instituições de ensino, é necessário compreender com clareza e precisão como se forma o ponto de vista que declara guerra ao conteúdo.
A prioridade, como é evidente, está na concepção de que a sociedade capitalista funda uma série de relações opressoras, não havendo exceção a este princípio no sistema educacional. Apesar da real possibilidade de se abordar a educação a partir de uma lógica mais abrangente, que engloba o conjunto de divisões de uma sociedade, é certo que ela não seria capaz de esgotar questões reais específicas, como as epistemológicas e psicológicas. O que um tratamento sociológico de viés tão estreito consegue é apenas desconhecer os problemas envolvidos na atividade do professor que busca ajudar seus estudantes em vista do conhecimento. Como simulacro disso, oferecem metáforas econômicas para ideologizar os “conteúdos”, associadas a analogias políticas para dar um sentido dramático à desigual posição dos alunos diante do corpo docente.
Já nesta percepção falsa do conhecimento, se dá o erro fatal. Um vastíssimo arquivo de informações, extraídas dos livros ou da observação, não se confunde com o que seja propriamente conhecer, mas é um momento fundamental do processo. Isto significa que aquilo que aprendemos por pura prática, ou instruídos ao nível do senso comum, é a “matéria-prima” do que potencialmente se formará como conhecimento, por meio do estudo e das aulas. Portanto, se há um caminho de desenvolvimento, seria mais generoso da parte do professor fornecer o máximo de conteúdo relevante e eficaz para estimular o avanço do aluno. Tratá-lo como igual em conhecimento é condená-lo a continuar um nanico intelectual.
Além disso, que existam conhecimentos estabelecidos, seja isto um mero fetiche ou algo epistemologicamente justificável, é um fato que jamais impediu o surgimento de novas perspectivas que se contraponham às tradicionais. Pelo contrário, sem nenhuma “pedagogia libertadora”, a modernidade teve Bacon, Descartes, Galileu, Copérnico, Newton, Kant, etc, inclusive um tal de Marx, cuja obra nem teria existido na ausência das ideias que ele se esforçou por confrontar. Para problematizar ou criticar, não se dá um comando direto como adestradores, mas se provoca e desafia com afirmações em disputa no tema tratado: isto sim é dialética.
Curiosamente, os inimigos do “conteudismo” parecem se esquecer que a postura aconselhada aos professores deixa de ser válida no ambiente dos cursos de Pedagogia e Licenciatura, pois ali sua doutrina deve ser apresentada como conteúdo que goza da autoridade de conhecimento consagrado, ou sua transmissão se debilitaria dissolvendo-se em inconclusivas problematizações em torno dela mesma. Sem a mais rígida hierarquia que divide os que propõem o modelo pedagógico hegemônico e os obedientes professores militantes, a missão sócio-política que os mobiliza jamais seria concebível.

A colonização dos cursos de humanas


A colonização dos cursos de humanas

Há um modo de pensar típico da sociologia, mas também familiar para cientistas políticos, historiadores e antropólogos, que é partir da premissa de que o conjunto da sociedade está ajustado como um sistema, postulando sua unidade dotada de lógica própria apesar de suas múltiplas diferenças internas. Com esse procedimento, a lógica específica de cada setor da sociedade é “dissolvida” numa forma global que estabelece a dinâmica das conexões entre os vários setores, entendidos assim como partes interdependentes.
Mas a “tal” sociedade em sua totalidade jamais está acessível por meio da experiência de nenhum de seus cidadãos, por obviamente tratar-se de uma abstração.  E o problema está em que a forma adequada de tal abstração é a questão que divide os maiores sociólogos e as principais vertentes da área.  No entanto, ao ser disseminada fora do ambiente das controvérsias de que é parte, uma doutrina sociológica qualquer pode ser facilmente “hipostasiada” e adquirir o status de revelação divina, já que a recepção acrítica cria a ilusão da infalibilidade do conteúdo adquirido de “segunda ou terceira mão”. Esse é o caso, muitas vezes, de cursos de Pedagogia, Psicologia, Jornalismo e até Letras, entre outros, dependendo da instituição.  
E foi assim que o esquema exposto no prefácio à crítica da economia política, de Marx, tornou-se dogma teórico e sobretudo prático na transformação da finalidade científica e técnica de cada área em um único propósito de natureza política para todas elas. Com o jargão da infra-estrutura e da super-estrutura, a tese é que os modos e relações de produção, a economia, são a base que determina tudo o mais na sociedade. Daí que o conhecimento, o ensino, o estudo, a produção científica e cultural em geral, ou o exercício de qualquer profissão, são avaliados segundo o critério da relação destas práticas com a configuração do poder em cada sociedade. O resultado óbvio disso é que qualquer área profissional e científica que não oferece algo de útil para reforçar certos discursos ideológicos e agendas políticas, é criminalizada por aquilo mesmo que tradicionalmente a define.
Além de sua hegemonia teórica, a peculiaridade marxista na ênfase da praxis revolucionária reduz o ensino, a formação e a pesquisa a ferramentas ou até armas da ação : deve-se transformar o mundo, sem isso de nada vale interpretá-lo. Um professor que tenha  algum “conteúdo”, por humilde que seja, e o impulso de “transmitir “ isso aos alunos, é um fascista, já que devia estar integralmente concentrado em sua única missão de incutir slogans de propaganda, tal qual luta de classes, desigualdade, opressores e oprimidos, justiça social, nos aspirantes a “ocupadores” de qualquer coisa. Um artista, escritor, sacerdote religioso ou jornalista, todos igualmente condenados ao trabalho forçado, reproduzem o mesmo proselitismo.  Mas nada poderia ser mais deformada do que a essência de uma ciência, quando esta é reduzida à sua (suposta) posição hierárquica na sociedade, com todos os fatores culturais, políticos e econômicos, que isto envolve. Tal  abordagem pode ter alguma validade para o sociólogo ou antropólogo que tem na comunidade científica seu objeto de pesquisa. E ainda que o cientista social denuncie interesses políticos e econômicos reverberando em vários aspectos da atividade científica, seria surreal desejar reprogramar as práticas e finalidades que orientam uma comunidade, para adequá-la a uma lógica extrínseca a ela e cumprir função social mais justa. Se no discurso isto soa como condenação moral, na prática se dá como totalitarismo, seja no ambiente acadêmico ou profissional.
Deve-se ressaltar que o marxismo jamais atingiu o status de ciência, nem mesmo em suas versões mais sofisticadas, consistindo o esquematismo caricato das noções aqui mencionadas em grosseira vulgarização, uma concepção de causalidade mecânica da qual a dialética está muito distante. Se estudante, professor ou profissional, tem seu princípio e motivação na ciência a que se dedica e na excelência com que realiza seu ofício, não pode anular sua vocação como sacrifício por uma causa política que capitalizará para si o produto de sua atuação. Pedagogos, psicólogos, jornalistas, todos indiscutivelmente possuem muitos motivos para dialogar e interagir com as Ciências Sociais. Mas daí não se pode exigir que o modelo de formação e prática daquelas áreas seja determinado por abstrações sociológicas.

Educação para a subversão



Educação para a subversão


No ginásio do Colégio Pedro II (RJ), havia aulas de “Educação para a cidadania” que, apesar de entediantes, enfatizavam lugares-comuns inquestionavelmente vinculados aos princípios e valores de uma democracia. Não havia ambiguidades na retórica que se apresenta como democrática, mas coerência com os direitos e deveres que se ensinava, sem insinuar ou alegar abertamente que se deve suspeitar da legitimidade dessas noções.
As diretrizes da educação brasileira se modificaram tanto desde então que já nem é possível comparar o cenário atual com o do relato. A educação em valores morais e éticos deixou de ser função de uma disciplina entre muitas voltadas para o ensino do conhecimento. Agora, a “catequese” é onipresente dos primeiros anos escolares até o topo da formação universitária. No entanto, tamanho esforço é dedicado a tornar os estudantes céticos e cínicos diante do ideal democrático. A afirmação parece absurda caso se desconheça teses já clássicas do marxismo, além da informação de que tal doutrina orienta a formação de professores e, na prática, impera absoluta em cursos de humanas.
Não importa que professores e autores aleguem defender a democracia como modelo de regime, quando há doutrinação marxista, o aluno que adere se compromete com uma lógica que o conduz a valorar negativamente tudo aquilo que nossa tradição cultural exaltou e defendeu, inclusive os fundamentos filosóficos que dão sentido ao estado de direito. Segundo o próprio Karl Marx, as leis de uma sociedade capitalista e seu regime político, apenas servem para garantir jurídica e militarmente a dominação de burgueses sobre proletários. Portanto, tudo não passa de formalidade, sendo dever revolucionário transgredi-la. Violar as regras do jogo que é determinado pelo inimigo na “luta de classes” não é prática que dependa de um comando explícito e específico de um líder da militância. Trata-se de automática inferência a típica glamourização da ilegalidade e criminalidade quando se raciocina no interior de parâmetros de uma teoria que só se realiza plenamente ao resultar na ação subversiva e violenta.
Do mesmo modo que se faz com o Direito (burguês) e a Democracia (burguesa), o tom moralizante é adotado diante de qualquer traço sócio-cultural que o marxista pressupõe estar vinculado essencialmente ao capitalismo. Pelo pecado original de participar da “superestrutura” no contexto da civilização onde tal sistema econômico surgiu, todos são culpados por cumplicidade com a exploração do proletariado: a religião, a moral, a ética, a política, a filosofia, a arte, epifenômenos e aparência de uma só “essência burguesa” que se conhece em sua máxima abrangência como Ocidente. Não importa se a revolução é imaginada como processo pacífico e democrático pelos professores, embora convivam com colegas entusiastas declarados da violência. A missão dos militantes inspirados em Paulo Freire, ou outro ideólogo da educação, é definida como destruição de toda a base espiritual que formou a cultura e a ordem social vigentes, ainda que em crise e já evidente decadência a esta altura.
Se ao nível individual, o impulso subversivo pode resultar nas mais diversas possibilidades, quando os estudantes são reunidos sob o comando de líderes, o efeito é bem determinado para que colabore com a meta do movimento, que é o apoio em massa ao autoritarismo e à violência, desde que rotulados como atos revolucionários. Não é difícil conquistar adesão para perseguir grupos da sociedade que os estudantes sempre foram estimulados por aqueles professores doutrinadores a odiar. Tudo é uma questão de adjetivar o alvo como “extrema-direita”, “fascista”, “machista”, “racista”, “as elites”, “elite branca”, ou simplesmente a síntese disso tudo no vocabulário brasileiro contemporâneo: “coxinha”.

Muito além da Ideologia: o fenômeno da doutrinação na educação brasileira

Muito além da Ideologia: o fenômeno da doutrinação na educação brasileira

Minha trajetória é atípica, por isso devo mencioná-la para evitar certos lugares-comuns na interpretação da caracterização que farei do problema, que é o da instrumentalização de escola e universidade para finalidades políticas. Tal qual muitos outros adolescentes de minha geração, pertenci a um senso comum que se pode classificar como marxista. Bom, era ao menos marxista o suficiente para eu ter presenteado uma namorada na época com um exemplar de bolso do Manifesto do Partido Comunista e para que em minhas primeiras participações como eleitor, tenha votado em figuraças da esquerda carioca como Jandira, Carlos Minc, Chico Alencar, etc. Mas depois como aluno de Ciências Sociais, as aulas do primeiro semestre já me frustraram por permitirem a constatação de falhas na teoria de Marx. Assim foi semestre após semestre do curso, primeiro na UERJ e em seguida na Unicamp. Decisiva, contudo, foram as leituras d’A Ideologia Alemã que me incomodaram pelo modo como se remete a filosofia, a religião, a arte, a cultura em seu conjunto a uma base econômica que estabelece a luta de classes numa sociedade.
Portanto, jamais poderia eu me opor ao ensino e estudo de Marx e autores da tradição marxista, pois me diferenciei filosoficamente de tal corrente pela via da leitura dela mesma sem qualquer influência “de direita”. Mas quando se fala de doutrinação, não se faz referência à erudição, ao senso crítico ou a altos debates, mas à negação e até proibição disso tudo como experiência em sala de aula. De fato, a doutrinação é apenas o elemento mais exposto encontrado entre causas e efeitos que remetem ao sistema educacional por completo e seus tão vergonhosos resultados. Não estamos falando de aulas de Chico de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Ernesto Laclau ou qualquer outro grande intelectual marxista, mas de professores pessimamente formados em pedagogia e licenciaturas várias, que mal sabem decorar as palavras de ordem da propaganda eleitoral do PT, que atuam como doutrinadores. É disso, e não menos, que se trata. O analfabetismo funcional parece até lucro onde se tem motivos para esperar apenas analfabetismo puro e simples.
Ao invés de se posicionar diante do grave problema, inimigos do projeto Escola Sem Partido parecem preferir a fuga para ideais abstratos, não por acaso os mesmos que impõem aqueles rumos que nos trouxeram ao fundo do poço. O aluno ideal debate livremente com o professor ideal, que jamais abusa de sua autoridade para proselitismo partidário nem pune alunos refratários à sua pregação, já que idealmente não são hierarquicamente desiguais. As denúncias e gravações divulgadas que são legião, provam não apenas que aquele ideal está longe de ser atingido mas que ele falsifica o que estudantes efetivamente sofrem todos os dias no país. Além disso, é famosa a coleção de conteúdos pitorescos, até bizarros, de tentativa de manipulação da opinião política em livros didáticos que ofendem alunos inteligentes, e a muitas famílias deixam escandalizadas.
Patética é a fé que deposita esperança num tal modus operandi para “conscientizar” e “emancipar” aqueles “oprimidos”, os quais no máximo estão sendo adestrados a digitar 13 (ou genéricos) e verde para confirmar na urna. Na maior parte dos casos, nem isso conseguem mais, restando apenas o lado puramente negativo de impedir que se faça algo intelectualmente enriquecedor com o tempo dos alunos na escola. Não deixa de ser curiosa a ideia de danificar o “capitalismo” num país levando à quase extinção da mão de obra tecnicamente capaz em praticamente todos os setores do mercado. Para a atividade intelectual e científica, não há dúvida de que tal processo tenha sido fatal, tornando-se impossível distinguir na paisagem um exegeta de clássicos da filosofia de um black bloc que parece até realizar mais eficazmente a proposta revolucionária de nosso modelo “pedagógico”. O professor é um black bloc mutilado, ou o black bloc é o professor plenamente consumado, concluímos.
Aspectos jurídicos da lei proposta assim como pertinência do uso do cartaz que expõe direitos e deveres a serem respeitados durantes as aulas, são objeto de controvérsias e representantes do Escola Sem Partido naturalmente estão aí para enfrentá-las, como se faz na democracia. Mas por mais contrária que seja a posição quanto a este projeto específico, não se justifica a mera indiferença, a negação ou até a defesa aberta da doutrinação como prática comum e aceitável. Melhor dito, explica-se apenas por lealdade ao “espírito de corpo” que mobiliza conjuntamente cursos de humanas e de formação de professores, sindicatos, partidos políticos, em suma, o óbvio interesse “conservador” apegado ao atual estado de coisas nesta área.
Texto postado pelo site Escola Sem Partido:
http://www.escolasempartido.org/artigos-top/625-muito-alem-da-ideologia-o-fenomeno-da-doutrinacao-na-educacao-brasileira